Monday, June 12, 2006

A importância das personagens não reais nos romances




ONDAS DE PRAZER (1m x 1m Óleo S/ tela)

Todo o engenho do primeiro romancista consistiu em compreender que, sendo a imagem o único elemento essencial na estrutura das nossas emoções, a simplificação que consistisse em suprimir pura e simplesmente as personagens reais seria um aperfeiçoamento decisivo. Um ser real, por mais profundamente que simpatizemos com ele, percebemo-lo em grande parte por meio dos nossos sentidos, isto é, continua opaco para nós, oferece um peso morto que a nossa sensibilidade não pode levantar. Se lhe sucede uma desgraça, esta só nos pode comover numa pequena parte da noção total que temos dele, e ainda mais, só numa pequena parte da noção total que ele tem de si mesmo é que a sua própria desgraça o pode comover. O achado do romancista consistiu na ideia de substituir essas partes impenetráveis à alma por uma quantidade igual de partes imateriais, isto é, que a nossa alma pode assimilar. Desde esse momento, já não importa que as acções e emoções desses indivíduos de uma nova espécie nos apareçam como verdadeiras, visto que as fizemos nossas, que é em nós que elas se realizam e mantêm sob o seu domínio, enquanto viramos febrilmente as páginas, no ritmo da nossa respiração e a intensidade do nosso olhar. E uma vez que o romancista nos pôs neste estado, no qual, como em todos os estados puramente interiores, cada emoção é decuplicada, e em que o seu livro nos vai agitar como um sonho, mas um sonho mais claro do que aqueles que sonhamos a dormir e cuja lembrança vai durar mais tempo, eis que então ele desencadeia em nós, durante uma hora, todas as venturas e todas as desgraças possíveis, algumas das quais levaríamos anos para conhecer na vida, e outras, as mais intensas de entre elas, jamais nos seriam reveladas, pois a lentidão com que se processam impede-nos de as perceber (assim muda o nosso coração, na vida, e esta é a mais amarga das dores; mas é uma dor que só conhecemos pela leitura, em imaginação, porque na realidade o coração transforma-nos do mesmo modo porque se produzem certos fenómenos da Natureza, isto é, tão lentamente que, embora possamos ver cada um dos seus diferentes estados sucessivos, por outro lado escapa-nos a própria sensação da mudança).

Marcel Proust "Em busca do tempo perdido" livro 1 "No caminho de Swann"